Homenagem a Miguel Portas, o homem que esteve sempre com “os de baixo”


Paulo Portas evoca o irmão, Miguel (Fotos: Miguel Manso)

Carácter forte, honestidade radical, suavidade e elegância amenas. Tão amenas que devem ser recordadas com os olhos enxutos, disse Paulo Portas sobre o irmão, Miguel, na homenagem pública em memória do eurodeputado e fundador do Bloco de Esquerda (BE) que decorreu neste domingo à tarde no jardim de Inverno do Teatro S. Luiz, em Lisboa.

O amplo espaço estava cheio à hora marcada. Por isso, a sala de espectáculos do teatro foi aberta para acolher centenas de pessoas que estiveram presentes para ouvir a evocação do percurso de vida do político e intelectual falecido na semana passada em Antuérpia.

“O meu irmão Miguel não era nada do género de trabalhar para a posteridade”, começou por dizer Paulo Portas, ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros e líder do CDS-PP. Garantiu que Miguel “não partiu magoado nem intranquilo” e quis que todos na sala soubessem que “em 50 anos de irredutível amizade falámos de tudo, contámos tudo, discutimos tudo, e rimos sempre”.

Num dos apontamentos musicais que alternaram com as intervenções evocativas do percurso político, cívico e humano de Miguel Portas, o pianista Mário Laginha interpretou uma versão livre de "Traz outro amigo também" (de Zeca Afonso). A escolha não podia ser mais apropriada, como lembrou Ruben de Carvalho, dirigente do PCP e vereador da Câmara de Lisboa: “Isso foi o que ele fez sempre ao longo de toda a vida.”

Lembrou o momento em que conhecera Miguel Portas, então com 14 anos e “debitando com assinalável convicção ideias várias e projectos”. Desde então, disse, passaram-se quase 40 anos de uma vida “a discutir um com o outro”. “Em termos de balanço, cheguei à convicção de que estivemos sempre em desacordo, excepto quando falávamos de banda desenhada, onde tínhamos os mesmos gostos.”

Personalidade transbordante

O presidente da câmara de Lisboa, António Costa (PS), conheceu Miguel Portas no Liceu Passos Manuel. Tinham três anos de diferença e “ele já era uma referência”.

O contexto foi uma tentativa de criar uma lista de unidade UEC/JS (União dos Estudantes Comunistas e Juventude Socialista, à data as duas organizações juvenis do PCP e do PS, respectivamente) para combater a direita instalada na associação de estudantes. Foi o início de uma relação de amizade. “’Namorámos’ bastante durante a década de 1990, quando era clara a necessidade de reorganização da esquerda. Esvaziámos muitos maços de tabaco, bebemos bastantes copos, comemos muito cuscuz, mas depois cada um ficou no seu campo”, lembrou António Costa.

Marisa Matias, companheira de Miguel Portas e camarada do Parlamento Europeu, recordou numa intervenção emotiva “o realista com sonhos”: “Fez-nos sonhar com coisas que achávamos que não era possível sonhar.” E acrescentou: “Para ele, a política não era outra coisa que as pessoas. Tinha uma qualidade única: juntar peças tão díspares num mesmo espaço.”

O deputado do BE João Semedo falou de “brutalidade” ao aludir à morte de Miguel Portas, um homem que “teve uma vida em cheio, feita de muitas vidas, amores e desamores, aventuras e desventuras, encontros e desencontros”. Para Semedo, Portas foi um optimista que fazia toda a gente acreditar nas pessoas sem reservas, sempre “pelos de baixo e com os de baixo, como ele gostava de dizer”.

O coordenador do BE, Francisco Louçã, viu em Portas um “romântico” que era capaz de dizer que “a vida pública e política nos humaniza”. Ele era alguém que “amava as coisas simples, escrevia com tempo mas vivia depressa”, era capaz de arriscar e perder, e que procurava os outros e aprendia com eles, fosse na mesquita azul de Istambul, na Grécia, em Gaza ou no Líbano sob bombardeamento.

“Livre como o vento, vago sem destino, vagaroso, sério, brincalhão e luminoso”, cantou Xana a encerrar a homenagem a Miguel Portas.

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